João Vieira - Letras

De 12 a 20 maio 2006, 10H00

Formas, Cores e Texturas

“João Vieira não pinta alegorias, pinta formas, cores e texturas. Assim, em vez de por exemplo pintar o Amor como uma narrativa protagonizada por Vénus, Marte e Cupido à maneira dos antigos – ou quaisquer outros ícones de um equivalente Hollywood moderno – pode em seu lugar pintas formas, cores e texturas que, quando lidas como letras, escrevem a palavra AMOR. Também não precisaria de dar uma profana imagem humana à divindade para pintar um Deus. E, quanto aos humanos, em vez de pintar a imagem física de uma mulher, basta que pinte o seu nome. Por exemplo, ANA, que já pintou mais do que uma vez em quadros tão diferentes como seriam os retratos de diferentes mulheres com o mesmo nome. Mas certamente que também as pintou pela simetria perfeita das letras, sem direito nem avesso. Além do bónus adicional de que ana contém o sufixo de negação, é um nome construído na imagem que o desconstrói, como um anagrama. Aliás, João Vieira também pintou vários quadros intitulados “Anagrama” e, num guache que eu tenho, pintou o anagrama AONIA, de Joana, o nome da filha que é minha afilhada e que, quando pequena, gostava de brincar a acreditar que a transliteração bernardiniana que eu gostava de lhe chamar era o seu secreto nome verdadeiro. Ou, pelo menos, é esta a narrativa que eu quero ler no movimento circular sugerido pelas letras rectangulares de comprimentos diferentes que partem do centro do quadro como raios parcialmente sobrepostos de uma roda aberta, nas cores vermelhas, negras e amarelas sobre um fundo azul que são a sua própria e única significação. Mas a verdade é que todos os nomes são anagramas, significam sempre aquilo que não são, são corpos tão imateriais como os da Ninfa que Adamastor quis aprisionar na sua ânsia de ter alma. Por isso, se João Vieira se quisesse compadecer com o petrificado destino do Gigante Amoroso, talvez lhe bastasse pintar a palavra NINFA.

As letras de João Vieira podem assim adquirir uma dimensão metafórica – ou seja, de além corpos – sem que a sua pintura tenha de recorrer a metáforas. O que só poderá parecer paradoxal a quem não entenda que a metafísica parte da tangibilidade das formas materiais, que a eternidade só existe na mortalidade dos corpos que a encerram, e que o próprio misticismo é um sistema semiótico, sendo até por isso que o nome de Deus é todas as letras de todos os alfabetos. É portanto uma pintura que, ao mesmo tempo, vira às avessas a sintaxe da poesia – já que a poesia vive de metáforas – e partilha do que talvez seja a própria essência da poesia. Não, é claro, porque seja uma pintura literária, de que é precisamente o oposto mesmo quando reconfigura palavras de poemas, como muitas vezes acontece fazer. O que tem em comum com a poesia é, por um lado, a qualidade essencial que torna a poesia intraduzível nas palavras que a traduzem noutra língua – se uma tradução funciona é porque não é o mesmo poema – e, por outro lado, permite que tenha correspondências não verbais noutras formas de arte. Liszt, como gosto de mencionar a propósito da pintura de João Vieira, compôs para piano três sonetos de Petrarca que não são nem ilustrações nem acompanhamentos mas equivalências puramente musicais.”

Helder Macedo

Datas 12 a 20/05
Local Sala Sete Cidades/Piso 2
Entrada Livre

Partilhar evento